E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta.

sábado, 30 de outubro de 2010




- 'O passado é talvez minha única invenção gloriosa. Por ele eu crio algumas linhas que me iludem na dissolução da hora presente sem finalidade. Por não lembrar de mais nada, exatamente como foi, eu falsifico uma pessoa que tende a ser melhor do que eu sou e a agir brilhantemente em qualquer aperto.
Minha idéia de mim é como a história de um país que se idolatra por seus mortos enforcados ilustres. Afirmo ter estado nas paisagens do armário que sonhei, mas não encontro jamais uma das caras possíveis por essa peregrinação da cabeça em minhas sendas.
Só a hora presente é o meu país, sem progresso e sem grandeza.
Só as aves entendem o que estou olhando ao longe, sem pensar, mas sentindo minha insignificância perfeita.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010


Pensei na espera sem palavras. 
Minha memória sabe ser muito precisa quando o sentimento é intenso. 
E assim sempre acontecerá. 
Acontecerá quando o vento unir nossos ombros e tudo que não foi será agora. 
Manhãs irão e noites voltarão como os pássaros de ontem dentro dos olhos fechados. 
E o tempo dormirá em nossas mãos.
O céu está caindo, o tempo urge..
Da janela do alucinante trem dos dias, vejo dragões multicoloridos desafiando o horizonte: de que adianta temer o futuro?
No intrincado jogo dos acasos e perdidos, me pergunto por que nos encontramos.
Será que um dia poderemos compreender o significado da nossa existência?


Valdir Rauber, meu professor de geografia no ensino médio. Ex-militar, vegetariano, naturalista. Grande cara.

Nos espelhos do seu camarim, sempre lendo as bulas pelo avesso, os jornais ao contrário, as histórias que lhe agradam, botando sempre algo de seu nas coisas que a fabricam e consomem.
Sempre a seguidora da banda, a espiã solitária que investiga as chances de uma praça onde só há memória e destroços, e uma coisa calma que eu não sei o nome.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Hoje levantei cedo pensando no que tenho a fazer antes que o relógio marque meia noite. É minha função escolher que tipo de dia vou ter hoje. Posso reclamar porque está chovendo ou agradecer às águas por lavarem a poluição. Posso ficar triste por não ter dinheiro ou me sentir encorajado para administrar minhas finanças, evitando o desperdício. Posso reclamar sobre minha saúde ou dar graças por estar vivo. Posso me queixar dos meus pais por não terem me dado tudo o que eu queria ou posso ser grato por ter nascido. Posso reclamar por ter que ir trabalhar ou agradecer por ter trabalho. Posso sentir tédio com o trabalho doméstico ou agradecer a Deus. Posso lamentar decepções com amigos ou me entusiasmar com a possibilidade de fazer novas amizades. Se as coisas não saíram como planejei posso ficar feliz por ter hoje para recomeçar. O dia está na minha frente esperando para ser o que eu quiser. E aqui estou eu, o escultor que pode dar forma. Tudo depende só de mim.


Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: 
Precisa-se de alguém, homem ou mulher, que ajude uma pessoa a ficar contente, porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S -  Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.



Mas só muito mais tarde, como um estranho flash-back premonitório, no meio duma noite de possessões incompreensíveis, procurando sem achar uma peça de Charlie Parker pela casa repleta de feitiços ineficientes, recomporia passo a passo aquela véspera de São João em que tinha sido permitido tê-lo inteiramente entre um blues amargo e um poema de vanguarda. Ou um doce blues iluminado e um soneto antigo. De qualquer forma, poderia tê-lo amado muito. E amar muito, quando é permitido, deveria modificar uma vida – reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e no território conquistado hastear uma bandeira. Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças. Mesmo que depois venha o tempo do sal, não do mel. 

Porque sem sal tudo perde o gosto. rs.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. 

 

Chega uma hora na vida que você cansa de dar murro contra a parede. E mesmo que você não aceite o rumo que tomou, passa a desencanar com as pedrinhas que estão no seu caminho. 
Quando você está em paz, o mundo inteiro fica mais colorido, mais leve, mais vivo. Os dias passam a ter gosto de algodão doce.
Quando você está de bem com a vida, ou só com você mesmo, o seu jeito estabanado de ser passa a ser engraçado. Cozinhar tem graça. Ficar atirada no sofá é bom. Ibernar parece terapia. Tudo tem peso e valor diferente.
Você se dá conta que as pessoas falam o tempo inteiro e na maioria das vezes falam sobre o que não sentem, julgam o que não vêm, vivem para o próprio umbigo. Todo mundo carente de atenção e sem a mínima vontade de se doar. Chega uma hora que você cansa de brigar com inimigos fantasmas e percebe o que realmente tem importância em sua vida (...)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O sol ainda não viera. E sem lua nem sol ela estava sozinha no banheiro. Esta revelação a fez baquear um pouco. Meio tonta com a solidão e a brancura do momento. Trôpega, buscou apoio na extremidade da pia, que respondeu fria e asséptica ao pedido de ajuda. Olhou para a porta, e se então tivesse saído teria escapado. Mas ficou. Ferindo a si mesma e por si mesma sendo ferida. Com o pretexto de lavar as mãos, molhou os pulsos, sem admitir a tontura – que às vezes tinha esses pudores íntimos.
http://apenasaprendendoaviver.blogspot.com
Chorar por tudo que se perdeu, 
por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, 
pelo que perdi de mim, 
pelo ontem morto, 
pelo hoje sujo, 
pelo amanhã que não existe, 
pelo muito que amei e não me amaram, 
pelo que tentei ser correto e não foram comigo. 
Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, 
recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. 
Tenho vergonha de gritar que esta dor é só minha, 
de pedir que me deixem em paz e só com ela, 
como um cão com seu osso.



A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. 
A única magia que existe é a nossa incompreensão.

domingo, 17 de outubro de 2010


É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
 

É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe. 
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

(Carlos Drummond de Andrade)

Desabafo.

Eu nunca vou ser completamente feliz assim. Será que é querer demais ansiar por essa felicidade? Não quero ter  só momentos felizes, porque sei que eles acabam... e tê-los arrancados de mim machuca, e é como uma ferida que nunca sara. Como um buraco no peito, que parece nunca fechar completamente.

E amanhã o sol nasce novamente, junto com a minha esperança de felicidade eterna. Porque só depois de você sofrer muito, e sempre, você vê essa possibilidade como uma salvação.

sábado, 16 de outubro de 2010



Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse. Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Eu tenho medo dos humanos, de suas ações, do mundo piorar e do nosso futuro estar programado para não existir.


Planos são realmente importantes?

Neste momento milhões de pessoas estão realizando ou se frustando com seus projetos. Comprar uma nova TV, curso de inglês do Júnior, casa na praia, viagem para Europa, presentes de final de ano, o peru de Natal, cursinho para concurso, novo modelo do carro, da máquina fotográfica, do celular, do IPod, da namorada, do marido, do amante, da amante, do amigo, meu eu novo, grana para bancar tudo isso. No final, corrida de ratos como sempre.
Alguém tem que pensar nisso de tempos em tempos. Quando todos estivermos atarefados e ninguém parar para ficar com raiva será o fim. Milhares de pessoas atoladas na areia da praia como siris sem saber para onde está o mar ou o banco. Uns poucos salvarão a raça subindo em pedras e criando uma nova civilização. Heróis na história da salvação. Sempre gostei deste termo quando o padre o cita na missa. Vou rezar por estes hoje. É rezar num nível mais alto. Desta vez vou para falar com o gerente.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010


Muitas vezes encontrar algo que te faça sentir bem, significa duvidar de tudo que sabe sobre o que é correto.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010



A louca desgrenhada em sua janela gradeada grita em silêncio para que lhe abram a porta, antes que suma nas brumas dessa noite prateada. Parece cega ou morta, mas só ela pode ver essa noite sem limites, que já nos colheu faz tempo, sem que nos déssemos conta.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010



Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro (...) Quero possuir os átomos do tempo.



Além de mim, quero apenas essa tranqüilidade de campos de flores e este gesto impreciso recompondo a infância.
Além de mim - e entre mim e meu deserto - quero apenas silêncio, cúmplice absoluto do meu verso, tecendo a teia do vestígio com cuidado de aranha.


Aquela banalidade de vida é que era a realidade da vida dela; aquela impossibilidade de fazer mais que sonhar é que era a certeza dele. O que ela manifestara para com ele fora apenas um sonho em voz alta, e o que ele manifestara para com ela, uma possibilidade em voz baixa. As vozes harmonizaram-se pela própria desarmonia.


Os devidos créditos à Milena Caetano, pela ilustração perfeita:
http://milenacaetano.blogspot.com




Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso com uma jóia. Ela.


- Porque escreves coisas tão sombrias? - perguntou-me ela.


- Achas minhas idéias sombrias, frias? Nunca me senti tão quente relendo minhas próprias palavras.


Não transfiras o momento do teu sonho. No instante em que ele vem, arrisca-te à sua fria lâmina: ele é tua unica herança, teu legado único, único vestígio.

Meu primeiro Selo.


Presente da especial Encantadora de Abelhas.

Me considero tal e qual um aeroporto. Chegadas e partidas são a única certeza na minha vida.
 Essenciais, e vividas com a mesma intensidade.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010



Estas só. Ninguém o sabe. Cala e finge. Mas finge sem fingimento.
Nada esperes que em ti já não exista. Cada um consigo é triste. Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas. sorte se a sorte é dada.
Aqui, neste misérrimo desterro onde nem desterrado estou, habito, fiel, sem que queira, aquele antigo erro pelo qual sou proscrito. O erro de querer ser igual a alguém.
Feliz, em suma - quando a sorte deu a cada coração o único bem de ele poder ser seu.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Chorei por três horas, depois dormi dois dias.
Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite.
As ruas vão mudando, os edifícios vão sendo destruídos. Mas continuam inteiros dentro de você. Chega um tempo, eu acho, que você vai olhar em volta sem conseguir reconhecer nada.


E não importa o que dizem - Caio Fernando de Abreu, grande pessoa.
Mesmo quando chove ou o céu tem nuvens, os amantes sabem sempre quando a lua é cheia. E quando míngua e some, sabem que se renova e cresce e torna a ser cheia outra vez, e assim por todos os séculos e séculos, porque é assim que é e sempre foi e será...

Ah... Como queria poder sentir assim..
Bebeu muitos cafés, deixando restos no fundo das xícaras. Exaltou-se. Ausentou-se. Nos intervalos da ausência distraia-se, entre susto e fascínio, em chamá-la de A Grande Indiferença.

Desligada. O vento morde meus cabelos sem medo - tenho todas as idades.

domingo, 3 de outubro de 2010





Heathcliff: Como você pode estar frente a mim e fingir que não se lembra?
Fingir que não sabe que meu coração se parte por você?
Que seu rosto é uma luz queimando em meio à escuridão?
Cathy: Heathcliff, pare, eu te proíbo.
Heathcliff: Você proíbe o que seu coração está dizendo?
Cathy: Ele não está dizendo nada.
Heathcliff: Eu estou escutando, mais alto que a música. Oh Cathy...
Cathy: Eu não sou a Cathy que era antes.
Você entende isso? Sou outra pessoa.
Sou a esposa de outro homem, ele me ama e eu o amo.
Heathcliff: Se ele te amasse com todas as forças de sua alma por uma vida inteira, ainda assim ele não te amaria tanto quanto eu te amo num único dia.



O morro dos ventos uivantes.


No início foi só um toque. Aproximou-se devagar, os movimentos largos e silenciosos, como se ela a qualquer momento fosse levantar-se e encará-lo, no início com surpresa, depois com um sorriso, e no final, uma gargalhada. Aquelas gargalhadas dela que sempre o deixavam desconfiado, pensativo. Aquele jeito escandaloso, até quando dormia, até quando ele queria tanto perdoá-la, como agora. E com esse pensamento veio-lhe a lembrança das ultimas noites (...)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

E tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo (...) que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.

Caio F. de Abreu.
Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade - voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade.


Caio F. de Abreu.

O vento secreto do vazio ainda soa em mim e me chama, como se meu esquecimento não fosse certo. Invisível, doloroso como um cemitério a céu aberto. Então eu me levanto, inspiro e expiro. Não de uma forma natural, mas como o vento secreto do vazio, que habita as profundezas do meu ser e me entorpece.




Nas noites de chuva, quando o céu lá fora desaba, as nuvens respondem e tudo estremece, ergo o olhar. Exausta, solitária.
Vejo ao meu redor o que ficou. Sinto que silenciosos fantasmas de outra idade me cercam, me assombram. Persistem.
Dou alguns passos. Sinto a chuva molhando meu corpo, lavando minha alma. A água escorre pelos meus pulsos fracos, marcados.
O passado me dá ânsias. O futuro me dá medo. Tento viver o presente. Só sinto o vazio escorrendo pelas mãos.